A prosódia dos debates presidenciais de 2018

Nicolas Figueiredo e Guili Minkovicius

Nicolas Figueiredo
7 min readOct 2, 2020

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Qual a diferença no tom de Bolsonaro quando ele fala sobre minorias e segurança pública? É possível detectar hesitações, falas agressivas, falas fora do padrão dos candidatos? Como falam quando respondem à uma acusação, e qual o efeito disso sobre nós? O que o jeito de falar pode nos revelar sobre um candidato?

Tentamos responder essas perguntas utilizando medidas acústicas da prosódia de cada candidato. Prosódia é o estudo da entonação, ritmo, intensidade, altura, duração e demais atributos da linguagem falada. Ou seja, a prosódia descreve tudo sobre o jeito que falamos — o nosso discurso em todas as suas características temporais, melódicas e timbrais. A nossa quantificação acústica da prosódia deve então passar pelas seguintes categorias: ritmo de fala, melodia e intensidade. Por enquanto, nos limitamos à análise das características rítmicas, deixando melodia e intensidade para a continuação desse artigo.

Metodologia

Foram analisados os seguintes debates da corrida presidencial de 2018, por emissora: RedeTV (17/8/18), TV Gazeta (9/9/18), SBT (26/9/18) e Record (30/9/18). Entre eles, só o debate da RedeTV conta com a presença de Bolsonaro. De cada debate foram extraídas todas as respostas e tréplicas, e ignoradas as perguntas e réplicas. O estudo foca no modo de resposta de cada candidato a um determinado assunto.

Para cada fala (resposta ou tréplica), analisamos as seguintes características temporais: número de pausas, tempo de fonação (tempo de resposta menos o tempo gasto em pausas) e número aproximado de sílabas. Com esses números, podemos calcular o ritmo de fala (número de sílabas por tempo de resposta) e o ritmo de articulação (número de sílabas por tempo de fonação).

A prosódia de cada candidato

Boxplot do ritmo de fala de cada candidato, mostrando para cada candidato sua mediana (linha verde), variância e os pontos fora da curva (bolinhas)

O ritmo de fala é definido como o número de sílabas dividido pelo tempo total de resposta. Ou seja, em termos simples, quem tem o maior ritmo de fala é quem fala mais (pelo menos em quantidade de sílabas). Naturalmente, cada pausa feita diminui o ritmo de fala. Se as desconsiderarmos e contarmos apenas o tempo de fonação (o tempo preenchido por voz humana) nessa conta, chegamos no ritmo de articulação. Note que alguém que tenha um ritmo de articulação lento mas que não faça pausas pode atingir o mesmo ritmo de fala de alguém com um ritmo de articulação rápido mas que faça muitas pausas.

De cara, Bolsonaro chama atenção pela grande diferença entre seu ritmo de articulação e fala. Entre os candidatos analisados, ele é o primeiro isolado em ritmo de articulação e o último em ritmo de fala (valores médios). Ou seja, ele fala rápido, mas faz muitas — e longas — pausas. Esse é o tempo total gasto em pausas de cada candidato no debate da RedeTV (lembre-se que cada candidato tem o mesmo tempo de fala):

Bolsonaro passou 110 segundos em silêncio dos 400 segundos que teve à sua disposição para respostas e tréplicas. O então candidato à presidência passou mais de um quarto do seu tempo em silêncio. Em sua resposta mais lenta, quando perguntado sobre dívida pública, passou quase metade (43,7%) do tempo em silêncio (1:05:37 a 1:06:50 do vídeo abaixo. A falha de 10 segundos no áudio do vídeo foi excluída da análise):

Em sua maioria, os demais candidatos não apresentam grande variação entre ritmo de fala e ritmo de articulação. Haddad é o candidato com menor variância de ritmo entre falas, seguido por Ciro, Boulos e Alckmin. Um caso interessante é o de Marina Silva. As suas falas só não variam mais de ritmo do que as de Bolsonaro e Daciolo, e é especialmente perceptível a diferença em sua prosódia ao longo do período das eleições.

No gráfico acima, da esquerda para a direita, as colunas aparecem em ordem cronológica dos debates. Entre o da Gazeta e Record, passaram-se 44 dias. É nítida a constante queda de ritmo de Marina ao longo do tempo, mas não é claro se isso se trata de uma mudança gradual de estratégia ou simplesmente um sinal da fadiga causada pela corrida eleitoral. O que sabemos é que, entre Boulos, Alckmin, Ciro e Marina, ela é a única que apresenta essa queda constante em ritmo. Porém, esse quatro candidatos tiveram a sua menor mediana de ritmo no debate da Record, o que contribui para a ideia de um cansaço geral ao fim da corrida pelo primeiro turno, que aconteceria uma semana depois.

Os pontos fora da curva

Nos quatro debates analisados, algumas falas específicas fogem do padrão médio apresentado pelos respectivos candidatos. Alckmin, ao ser acusado por Boulos sobre o dinheiro da merenda, atingiu seu maior ritmo de fala nos quatro debates analisados: 4,7 sílabas por segundo, um valor 17,5% maior que sua média. Sua segunda fala mais rápida foi uma resposta de 30 segundos sobre segurança pública, na qual fez apenas uma pausa e não apresentou nenhuma disfluência ou marca de hesitação. Em contraste, seus dois menores ritmos foram quando perguntado sobre a polarização crescente no país. Em uma dessas falas, de um pouco mais de um minuto e meio, o candidato fez 22 pausas, sendo 6 delas preenchidas. A pausa preenchida é comumente classificada na fonoaudiologia como uma disfluência que prejudica o entendimento da fala e indício de uma marca de hesitação.

Haddad, embora seja o candidato com menor variação em ritmo de fala, teve um momento fora de seu padrão no debate do SBT. Comentando sobre a cassação da candidatura de Lula, atingiu um ritmo de fala 10% maior que sua média. Boulos também costuma ser constante em suas falas, mas atingiu um ritmo de articulação 12% maior que sua média em um comentário sobre participação popular e a guerra às drogas.

Os candidatos por tema

Ritmos de fala para cada candidato, separando as respostas em 5 grupos temáticos.

As respostas analisadas foram separadas entre os seguintes 5 grupos, de acordo com seu tema: cultura/educação, saúde, segurança, economia e moral/ético. O gráfico acima mostra o ritmo de fala de cada candidato dentro de cada tema. A única distinção clara nos gráficos apresentados é o ritmo mais lento de Boulos em suas duas respostas sobre saúde. Porém, esse é um resultado consideravelmente enviesado, já que uma delas é a sua fala inicial do debate na qual se apresenta e cumprimenta os demais candidatos em um ritmo mais lento que o seu usual. No restante do tempo, em suas duas respostas, destaca a importância do SUS em seu plano de governo e denuncia a PEC do teto de gastos do governo Temer sem apresentar um desvio significante em sua prosódia padrão.

Apesar de não haver uma distinção clara por tema no discurso dos candidatos, essa separação nos permite analisar os assuntos mais abordados nos debates de 2018.

O gráfico acima mostra o número de falas sobre cada tema nos quatro debates analisados. Dentro do grupo moral/ético, foram consideradas respostas contendo os seguintes assuntos: alianças políticas, minorias, corrupção, democracia e polarização política, entre outros. Fica claro o destaque dado a essa temática durante toda a campanha eleitoral de 2018. Ela foi ponto central de pouco menos do que o dobro de falas do segundo lugar, a economia, no qual foram agrupadas respostas sobre política fiscal, tributação, desemprego e privatizações, entre outros. Surpreendentemente, o tema da segurança pública, tido como um ponto chave dessas eleições, ganhou a mesma atenção que cultura, educação e saúde.

Considerações finais

Algumas considerações podem ser feitas a partir dos dados apresentados. Dentro do estudo conduzido, a prosódia de Bolsonaro é a mais discrepante. Geralmente, um número elevado de pausas alongadas e variação grande no ritmo de fala ao longo de um debate denotam um discurso menos treinado e mais improvisado. Porém, o fato dele fugir ao padrão apresentado pelos outros candidatos corrobora seu apelo como um personagem que, nas aparências, foge da “velha política”. Ou seja, por mais que possa ser lida como desarticulada, sua prosódia funciona a favor da estratégia de posicionamento como um “outsider” da política tradicional. O jeito de falar de Bolsonaro é uma poderosa forma de distinção dele dos personagens tradicionais da política brasileira.

O decaimento de Marina ao longo da corrida, assim como o ritmo médio baixo do debate da Record, abrem possibilidades de maiores estudos em cima das diferenças de prosódia entre debates específicos. Com a medição de intensidade, por exemplo, poderíamos avaliar se o tom geral de um debate é mais agressivo ou ponderado que os demais. Na continuação desse estudo, analisaremos a melodia e intensidade de cada fala para um retrato mais completo da prosódia dos debates de 2018.

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Nicolas Figueiredo

Computação musical, ciência de dados, humanidades digitais e política.